Entra em cena Fred, dezesseis anos, filho único do casal.
FRED: Papai, mamãe...
DUDI: (despejando o gelo picado no drinque) Wow, as aulas de matemática não foram em vão. Ele já sabe contar.
FRED: Bom, é pra isso mesmo que vim, papai. Eu preciso contar.
DUDI: (levando o indicador à boca) Mm. Falta algo. Sim, sim, você dizia? Contar, pois não? Então – com você, somos três. Agora descanse.
VIVI: (ainda meio dormindo) Três? Pode ser. Mas dessa vez tem que ser com homem.
FRED: Não é isso, papai. Eu, bem, preciso contar uma coisa e... não sei como começar.
DUDI: Wow, me deixa adivinhar. Você vai dizer que ficou no armário por tanto, mas tanto tempo, que acabou se especializando em interiores e agora quer ser decorador de closets. Ou seja, praticar o vergonhoso ato que em nossa família não ousa dizer seu nome: trabalhar. Acertei? Não, a pergunta é – onde foi que eu errei?
FRED: Não, papai, é que...
DUDI: (provando novamente o Curaçao) Não, onde foi que eu errei no drinque? Mnham, mnham. Pouco leite de coco.
VIVI: (ainda meio dormindo) Leite de coco? Mm. Seu pervertido. Mas eu topo.
FRED: Não é nada disso. Vocês podem me ouvir?
VIVI: (finalmente acordando) Agora eu posso, filhinho. Fala então mais baixo, pra mamãe voltar a dormir. É pedir muito? Mm?
FRED: Olha, já que eu não sei por onde começar, vou direto ao assunto. Preciso confessar. Eu... Hã... Bem. Vocês são adotados.
VIVI: Certo. Este tom está bom (volta a dormir).
FRED: Vocês não ouviram? Vocês foram adotados! Quando eu tinha dois anos!
DUDI: (depois de uma leve tremidinha no copo do drinque) Prove.
FRED: Eu tenho os documentos, tenho a...
DUDI: (estende o drinque) Não, prove aqui e me diga se falta algo.
FRED: Sem essas ambivalências óbvias, papai. Você acaba de pedir provas da adoção – mas pra não perder o aplomb se deu ao trabalho de partir pro duplo sentido espirituoso.
DUDI: Wow, eu e “trabalho” na mesma frase? Ah, a impertinência geracional. Mas OK. Prove que somos adotados.
FRED: (mostra os documentos de adoção) Tudo aqui. Registrado em cartório. Os Dudi e Vivi verdadeiros acordavam cedo; ele tocava os negócios da empresa e ela era artista plástica premiada – ambos a vergonha da família. Foi então que vovô resolveu matá-los – ou enviá-los a Saquarema, não lembro agora – e colocar um casal anônimo no lugar. Foram implantadas memórias falsas em suas mentes. Tão falsas quanto a fortuna que vocês ostentam hoje. E assim tudo voltou ao que era.
DUDI: (percebendo que as tremidas no copo quase fizeram o drinque ficar no ponto) Sei. E por que você resolveu contar tudo agora?
FRED: (mexendo com o dedão do pé a água da piscina) Sei lá. Achei que vocês já estavam em idade de saber. Antes que seus colegas de pólo começassem a fazer fofoquinha. Vocês precisavam ouvir de mim.
DUDI: (bebericando o drinque, ainda não satisfeito) Wow, então ficamos como – eu e sua mãe, em crise de identidade, partimos numa jornada alegórico-emocional em busca de nosso filho verdadeiro? O encontro vai ser marcado por uma contida cordialidade e no final voltaremos pra você, convictos de que filho não é só quem nasce, mas quem suporta a lassidão paterna?
FRED: (nem disfarçando a comoção) Sabia que você ia entender, papai. Suas passagens pra Botucatu já estão compradas. Já acertei tudo pra, em sua volta, posarmos todos – inclusive o filho legítimo – para matérias da Caras e da Quem.
DUDI: Ué. Não tenho mesmo nenhuma reunião da empresa pra não ir nas próximas duas semanas. Fechado.
Fred retira-se do deck, assoviando "Começar de Novo", de Ivan Lins e Vítor Martins.
VIVI: (acordando) Perdi alguma coisa?
DUDI: Não muito. Nosso filho com crise de meia-adolescência. Descansa. (descobre então que no drinque não tem a cereja). Voilà! Falta ela!
VIVI: (meio dormindo, meio acordada) Tá bom, tá bom, pode ser mulher, então (vira-se a cabeça para o lado, para exercitar-se). Seu tarado. Mas eu te amo. Viu?
FRED: Papai, mamãe...
DUDI: (despejando o gelo picado no drinque) Wow, as aulas de matemática não foram em vão. Ele já sabe contar.
FRED: Bom, é pra isso mesmo que vim, papai. Eu preciso contar.
DUDI: (levando o indicador à boca) Mm. Falta algo. Sim, sim, você dizia? Contar, pois não? Então – com você, somos três. Agora descanse.
VIVI: (ainda meio dormindo) Três? Pode ser. Mas dessa vez tem que ser com homem.
FRED: Não é isso, papai. Eu, bem, preciso contar uma coisa e... não sei como começar.
DUDI: Wow, me deixa adivinhar. Você vai dizer que ficou no armário por tanto, mas tanto tempo, que acabou se especializando em interiores e agora quer ser decorador de closets. Ou seja, praticar o vergonhoso ato que em nossa família não ousa dizer seu nome: trabalhar. Acertei? Não, a pergunta é – onde foi que eu errei?
FRED: Não, papai, é que...
DUDI: (provando novamente o Curaçao) Não, onde foi que eu errei no drinque? Mnham, mnham. Pouco leite de coco.
VIVI: (ainda meio dormindo) Leite de coco? Mm. Seu pervertido. Mas eu topo.
FRED: Não é nada disso. Vocês podem me ouvir?
VIVI: (finalmente acordando) Agora eu posso, filhinho. Fala então mais baixo, pra mamãe voltar a dormir. É pedir muito? Mm?
FRED: Olha, já que eu não sei por onde começar, vou direto ao assunto. Preciso confessar. Eu... Hã... Bem. Vocês são adotados.
VIVI: Certo. Este tom está bom (volta a dormir).
FRED: Vocês não ouviram? Vocês foram adotados! Quando eu tinha dois anos!
DUDI: (depois de uma leve tremidinha no copo do drinque) Prove.
FRED: Eu tenho os documentos, tenho a...
DUDI: (estende o drinque) Não, prove aqui e me diga se falta algo.
FRED: Sem essas ambivalências óbvias, papai. Você acaba de pedir provas da adoção – mas pra não perder o aplomb se deu ao trabalho de partir pro duplo sentido espirituoso.
DUDI: Wow, eu e “trabalho” na mesma frase? Ah, a impertinência geracional. Mas OK. Prove que somos adotados.
FRED: (mostra os documentos de adoção) Tudo aqui. Registrado em cartório. Os Dudi e Vivi verdadeiros acordavam cedo; ele tocava os negócios da empresa e ela era artista plástica premiada – ambos a vergonha da família. Foi então que vovô resolveu matá-los – ou enviá-los a Saquarema, não lembro agora – e colocar um casal anônimo no lugar. Foram implantadas memórias falsas em suas mentes. Tão falsas quanto a fortuna que vocês ostentam hoje. E assim tudo voltou ao que era.
DUDI: (percebendo que as tremidas no copo quase fizeram o drinque ficar no ponto) Sei. E por que você resolveu contar tudo agora?
FRED: (mexendo com o dedão do pé a água da piscina) Sei lá. Achei que vocês já estavam em idade de saber. Antes que seus colegas de pólo começassem a fazer fofoquinha. Vocês precisavam ouvir de mim.
DUDI: (bebericando o drinque, ainda não satisfeito) Wow, então ficamos como – eu e sua mãe, em crise de identidade, partimos numa jornada alegórico-emocional em busca de nosso filho verdadeiro? O encontro vai ser marcado por uma contida cordialidade e no final voltaremos pra você, convictos de que filho não é só quem nasce, mas quem suporta a lassidão paterna?
FRED: (nem disfarçando a comoção) Sabia que você ia entender, papai. Suas passagens pra Botucatu já estão compradas. Já acertei tudo pra, em sua volta, posarmos todos – inclusive o filho legítimo – para matérias da Caras e da Quem.
DUDI: Ué. Não tenho mesmo nenhuma reunião da empresa pra não ir nas próximas duas semanas. Fechado.
Fred retira-se do deck, assoviando "Começar de Novo", de Ivan Lins e Vítor Martins.
VIVI: (acordando) Perdi alguma coisa?
DUDI: Não muito. Nosso filho com crise de meia-adolescência. Descansa. (descobre então que no drinque não tem a cereja). Voilà! Falta ela!
VIVI: (meio dormindo, meio acordada) Tá bom, tá bom, pode ser mulher, então (vira-se a cabeça para o lado, para exercitar-se). Seu tarado. Mas eu te amo. Viu?