Então o garoto, único sobrevivente do naufrágio, se deu
conta de que não estava sozinho no barco salva-vidas. Á frente dele, pulsante, tão
ameaçadora quanto indefinida, impunha-se uma assombrosa metáfora.
A princípio o garoto achou mais prudente fingir que ela não
existia. Mas quando ele meio que ouviu a metáfora sussurando algo – um murmúrio
muito abafado, para dentro, mas provavelmente dirigido a ele – , tomou coragem
e perguntou:
- O que você disse aí?
- Eu? – perguntou a metáfora, olhando ao redor, como se
houvesse mais alguém no barco.
- É. Você sussurrou algo.
- Eeeeu? – agora a metáfora parecia dissimular. – Ah. Mm. Eu não. Não falei nada. Nadinha.
O garoto podia jurar que ela tinha murmurado “Nem te ligo,
farinha de trigo...”.
- Então está certo – ele voltou a falar. – Não adianta eu
fingir que você não existe nem você fazer o mesmo. Vamos lá: você é o quê?
- Sou uma metáfora – disse a metáfora.
- Mas metáfora de quê?
- Não faço ideia. Por pressão da editora, essa história precisava ficar pronta logo e não deu tempo do autor me elaborar. Fiquei só como uma metáfora apriorística.
- Certo – disse o garoto, pressentindo que daquele mato
metafórico não sairia coelho simbólico. – Eu devo ver você como. De repente...
um tigre?
- Há – riu-se a metáfora. – Tigres são departamento do Jorge
Luis Borges. Meu autor não chega a tanto.
- Um... elefante?
- Carlos Drummond de Andrade. E outra, nós não estaríamos mais aqui neste bote se eu fosse um paquiderme, huh?
O garoto esperou um pouco para dizer:
- Você... sou eu? Este seria o momento da confrontação inevitável de mim mesmo com minha
verdadeira essência, e preciso enxergar nela a verdade, olhando meu medo
primordial bem nos olhos e...
- Ei, não sou tão mal acabada.
- Certo, certo – e o garoto já começava a se impacientar. – Você é o princípio e o fim de todas as coisas, a denotação da impermanência?
- Putz, estamos é jogando Imagem & Ação? – resmungou a
metáfora, entediada. – Então deixa eu agora – e aí a metáfora começou a
gesticular, dando a entender que se referia a algo emergente, volumoso,
devastador.
- Um... uma... – disse o garoto, tentando adivinhar. – Ah, já
sei! A crescente insensibilidade nas relações, marca registrada do século XXI?
Não. A metáfora tentava avisar que atrás dele vinha uma onda
de dezesseis metros de altura, que inclusive fez o barco virar e arremessou ambos
para o fundo do mar. Mas nem tudo se perdeu: a história virou filme e a metáfora
ganhou o Oscar de efeitos visuais.