domingo, 24 de junho de 2012

Esquete decadente, meu Deus

Segunda-feira, dez da manhã. Estamos no deck da piscina dos Almereyda-Bratt, família quatrocentona mas – graças aos poderes mágicos do dr. Pitanguy – com um corpinho de bicentenária. No deck estão Dudi Bratt, campeão de pólo cujo hobby é não aparecer na empresa da família, e Vivi Bratt, née Prado, cujo hobby é acordar de vez em quando. Dudi prepara seu Blue Hawaiian no bar da piscina e Vivi, estirada na cadeira, acorda de quinze em quinze minutos para não perder a forma.
Entra em cena Fred, dezesseis anos, filho único do casal.

FRED: Papai, mamãe...

DUDI: (despejando o gelo picado no drinque) Wow, as aulas de matemática não foram em vão. Ele já sabe contar.

FRED: Bom, é pra isso mesmo que vim, papai. Eu preciso contar.

DUDI: (levando o indicador à boca) Mm. Falta algo. Sim, sim, você dizia? Contar, pois não? Então – com você, somos três. Agora descanse.

VIVI: (ainda meio dormindo) Três? Pode ser. Mas dessa vez tem que ser com homem.

FRED: Não é isso, papai. Eu, bem, preciso contar uma coisa e... não sei como começar.

DUDI: Wow, me deixa adivinhar. Você vai dizer que ficou no armário por tanto, mas tanto tempo, que acabou se especializando em interiores e agora quer ser decorador de closets. Ou seja, praticar o vergonhoso ato que em nossa família não ousa dizer seu nome: trabalhar. Acertei? Não, a pergunta é – onde foi que eu errei?

FRED: Não, papai, é que...

DUDI: (provando novamente o Curaçao) Não, onde foi que eu errei no drinque? Mnham, mnham. Pouco leite de coco.

VIVI: (ainda meio dormindo) Leite de coco? Mm. Seu pervertido. Mas eu topo.

FRED: Não é nada disso. Vocês podem me ouvir?

VIVI: (finalmente acordando) Agora eu posso, filhinho. Fala então mais baixo, pra mamãe voltar a dormir. É pedir muito? Mm?

FRED: Olha, já que eu não sei por onde começar, vou direto ao assunto. Preciso confessar. Eu... Hã... Bem. Vocês são adotados.

VIVI: Certo. Este tom está bom (volta a dormir).

FRED: Vocês não ouviram? Vocês foram adotados! Quando eu tinha dois anos!

DUDI: (depois de uma leve tremidinha no copo do drinque) Prove.

FRED: Eu tenho os documentos, tenho a...

DUDI: (estende o drinque) Não, prove aqui e me diga se falta algo.

FRED: Sem essas ambivalências óbvias, papai. Você acaba de pedir provas da adoção – mas pra não perder o aplomb se deu ao trabalho de partir pro duplo sentido espirituoso.

DUDI: Wow, eu e “trabalho” na mesma frase? Ah, a impertinência geracional. Mas OK. Prove que somos adotados.

FRED: (mostra os documentos de adoção) Tudo aqui. Registrado em cartório. Os Dudi e Vivi verdadeiros acordavam cedo; ele tocava os negócios da empresa e ela era artista plástica premiada – ambos a vergonha da família. Foi então que vovô resolveu matá-los – ou enviá-los a Saquarema, não lembro agora – e colocar um casal anônimo no lugar. Foram implantadas memórias falsas em suas mentes. Tão falsas quanto a fortuna que vocês ostentam hoje. E assim tudo voltou ao que era.

DUDI: (percebendo que as tremidas no copo quase fizeram o drinque ficar no ponto) Sei. E por que você resolveu contar tudo agora?

FRED: (mexendo com o dedão do pé a água da piscina) Sei lá. Achei que vocês já estavam em idade de saber. Antes que seus colegas de pólo começassem a fazer fofoquinha. Vocês precisavam ouvir de mim.

DUDI: (bebericando o drinque, ainda não satisfeito) Wow, então ficamos como – eu e sua mãe, em crise de identidade, partimos numa jornada alegórico-emocional em busca de nosso filho verdadeiro? O encontro vai ser marcado por uma contida cordialidade e no final voltaremos pra você, convictos de que filho não é só quem nasce, mas quem suporta a lassidão paterna?

FRED: (nem disfarçando a comoção) Sabia que você ia entender, papai. Suas passagens pra Botucatu já estão compradas. Já acertei tudo pra, em sua volta, posarmos todos – inclusive o filho legítimo – para matérias da Caras e da Quem.

DUDI: Ué. Não tenho mesmo nenhuma reunião da empresa pra não ir nas próximas duas semanas. Fechado.

Fred retira-se do deck, assoviando "Começar de Novo", de Ivan Lins e Vítor Martins.

VIVI: (acordando) Perdi alguma coisa?

DUDI: Não muito. Nosso filho com crise de meia-adolescência. Descansa. (descobre então que no drinque não tem a cereja). Voilà! Falta ela!

VIVI: (meio dormindo, meio acordada) Tá bom, tá bom, pode ser mulher, então (vira-se a cabeça para o lado, para exercitar-se). Seu tarado. Mas eu te amo. Viu? 

domingo, 17 de junho de 2012

Silicone com picanha


Cenário: restaurante.
Personagens: dois casais, Carlo e Teresa, Chico e Letícia.
Trilha ambiente do restaurante: “Beyond the sea”, com Bobby Darin.


(em diálogos cruzados, Teresa conversa com Letícia e Carlo conversa com Chico)

TERESA: ...e o Luís Fabiano perdeu três, três chances na cara do gol, caraca!

LETÍCIA: Mas o Lucas compensou, ué. A tabela não tava funcionando mas quando ele marcou aquele golaço de cabeça, o Coritiba, ó (faz sinal de top-top com a mão), perdeu o rumo de casa.

TERESA: Mas depois ele cansou. O Leão tinha que ter posto o Ademílson!

CARLO: ...Aí eu voltei pro pilates. Sabe que eu até acho divertido?

CHICO: Ah, pelo menos não é monótono, né? Porque esteira, eu vou te falar...

CARLO: Aí eu já prefiro o spinning. Se é pra andar sem sair do lugar, fico muito menos chateado pedalando.

CHICO: (tira o guardanapo do colo, sinalizando que vai ao banheiro) Gente... cês dão licença?

CARLO: Eu vou também (levanta-se).

(Saem os dois)

TERESA: (rindo, para Letícia) Sabe que eu nunca entendi esse lance de homem sempre ir de dois pro banheiro?

LETÍCIA: (com certo tédio) Ah, isso é deles. Deve ser pra fofocar ou retocar a loção pós-barba. (olha para além do ombro de Teresa e cochicha) E você viu a mala do loiraço de blazer cinza, naquela mesa?

(estamos agora no banheiro. Carlo e Chico urinam)

CARLO (olhando para o pinto de Chico): Silicone? Jura?

CHICO: Deu pra notar?

CARLO: Deu, mas ao mesmo tempo parece... natural.

CHICO: Então, pega...

CARLO: Ah...

CHICO: Ah, vai, pega pra sentir.

(Carlo segura o pinto de Chico e fica um tempo com ele)

CARLO: É... parece natural mesmo.

CHICO: Né não? Eu quis botar só uns 80 ml. Dava vergonha, sabe, ir na academia de roupa justa e não aparecer nada. Auto-estima lá embaixo, ó.

(voltamos à cena da mesa, com Teresa e Letícia)

TERESA: ...Mas o Chico põe silicone no pinto e você fica babando aí pra mala dos outros, sua filha da puta? (riem, as duas, baixo)

LETÍCIA: Ah, é... o que você achou?

TERESA: Da mala do loiraço?

LETÍCIA: Não, ô! Do pinto do Chico. (ri)

TERESA: Uai, evitei ficar olhando muito pra ele não ficar sem graça. Mas, assim... precisava mesmo?

LETÍCIA: Ah, sabe como é homem quando cisma com essas coisas. Ia pra praia de sunga e passava vergonha.

TERESA: E na cama?

LETÍCIA: Ué, ele... (faz um discretíssimo aceno com a cabeça) Olhaí, tão voltando.

(Chico e Carlo sentam-se à mesa)

TERESA:...Então, quatro bolas no pé que não viram gol, ó, ó, pra mim é banco de reserva na partida que vem, viu.

LETÍCIA: E cê acha que o Mano não chama mais o Luís Fabiano?

(Chico e Carlo trocam divertidos olhares cifrados como que captando a evidente dissimulação da conversa das mulheres. O garçom chega e entrega o cardápio aos dois homens)

CHICO: Acho que vou querer salada.

CARLO: (pousando a mão na de Teresa) Amor, você reparou alguma coisa diferente no Chico?

CHICO: (ficando vermelho e cobrindo o rosto com o cardápio) Ah, Carlo, para.

LETÍCIA: (para Chico, passando a mão no cabelo dele) Uai, amor... se fez, por que essa vergonha? Hein?

(Nisso, o loiro de blazer paga a conta, levanta-se e vai embora, passando pela mesa deles. Nota-se que ele usa uma calça justíssima, e por mais que disfarcem, Letícia e Teresa registram com o canto do olho a passagem dele. Chico, um tanto decepcionado, dá um curto suspiro. Carlo o acompanha no desencanto)

CHICO: O meu cabelo, Teresa. Mudei o corte de cabelo. É isso.

TERESA: Ah...

(fica um denso silêncio por alguns instantes na mesa. O garçom dá sinal que vai se afastar, mas Chico faz sinal que ele volte).

CHICO: (Com voz levemente mais grossa) Desisti da salada. Traz uma picanha.

CARLO: E eu quero batata frita. Ah, cancela o Sauvignon que eu pedi e traz um chope.

TERESA (inclina a cabeça para um rapidíssimo sussurro com Teresa) Ah,  preguiça quando eles começam com esses chiliquinhos...

CARLO:  (para Letícia) O que cê falou aí? Hein?

TERESA: (tenta dar uma apertadinha no ombro dele) Ah, amor, nada não. Não preocupa sua linda cabecinha com...

CARLO: (tirando o guardanapo do colo e jogando na mesa, falando mais grosso ainda do que Chico) Não fala nesse tom comigo! Não fala nesse tom comigo!

(o restaurante inteiro olha. O garçom, que não é besta nem nada, se afasta rapidinho. A trilha ambiente passa para “My Love for You”, com Johnny Mathis)